sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Saudades Saramago, saudades...

Recordo o dia em que o velho ateu nos deixou. Em especial, recordo de algumas situações que antecederam o meu encontro com a notícia de sua morte.

Por volta das sete da manhã acordei e fixei meus olhos em um livro de cabeceira. O livro? “As intermitências da morte”. Folhei algumas páginas, deparei-me com algumas frases e anotações, para em seguida abandonar o mesmo em minha cama revirada pelo sono inquieto. 

Quando os noticiários da manhã traziam a triste notícia, um misto de sentimentos procedente do choque tomou conta dos meus pensamentos, mantiveram-me anestesiado por alguns minutos.

A morte! A morte, “... a morte devia ser um gesto simples de retirada, como do palco sai um actor secundário, não chegou a dizer a palavra final, não lhe pertencia, saiu apenas, deixou de ser preciso.”(Saramago em Ano da Morte de Ricardo Reis)

O dia estendeu-se, triste e vazio. Inúmeras homenagens eram dedicadas a esse ator, nada secundário, chamado José Saramago. 

O mundo não iria esquecer-te tão cedo, velho metido a sábio. Mesmo que saibas que o mundo esquece, “... o mundo esquece tudo, Acha que o esqueceram, O mundo esquece tanto que nem sequer dá pela falta do que esqueceu.”(Saramago em Ano da Morte de Ricardo Reis)

Durante meu recesso acadêmico, dediquei tempo para algumas literaturas, em especial do Alemão Goethe e do Russo-Soviético Górki. Havia nelas, uma coincidente ligação entre Saramago. O fato fez-me ir além de uma cotidiana leitura dos textos. Senti a necessidade de aprofundar minha formação literária e parti para uma pesquisa e reflexão sobre algumas das obras que há anos me intrigam, seja pela vida intensa dos seus autores, ou por características que prendem meu coração ao descrever com tamanha beleza a vida. Afinal, “... o que importa é reconhecer o belo e ousar expressá-lo – o que, de fato, é dizer muito com poucas palavras” como diria Goethe em seus Sofrimentos do Jovem Werther.

O presente texto é fruto desse desejo de mergulhar na teoria literária, fato que certamente deixará meus ex-professores (as) de literatura intrigados.

Nessa primeira tentativa escolhi dedicar atenção ao “Ano da Morte de Ricardo Reis”. Um livro que nos coloca diante de uma cadeia de leitores, como cita Regina Kawamura (2009) em sua dissertação: “Temos Ricardo Reis leitor de jornais; Fernando Pessoa e do livro de Herbert Quain; Fernando Pessoa, por sua vez, leitor de Ricardo Reis; Saramago leitor de Fernando Pessoa, de Reis, de Borges, de Camões, entre outros; e por fim, nós, leitores de Saramago, e, de certo modo, leitores de todos.” 

Após 16 anos de ausência, e da recente morte de Pessoa, Reis regressa para uma Lisboa que começa viver o clima sombrio do fascismo, do pensamento político conservador, cuja inquietadora novidade dos portugueses passa a ser a utilização de Deus como avalista político. “Será inquietadora, mas novidade não é, desde que os hebreus promoveram Deus ao generalato, chamando-lhe senhor dos exércitos, o mais têm sido meras variantes do tema, É verdade, os árabes invadiram a Europa aos gritos de Deus o quer, Os ingleses puseram Deus a guardar o rei, Os franceses juram que Deus é Frances, Mas o nosso Gil Vicente afirmou que Deus é Português...”

O livro nos aproxima desse Ricardo Reis, cuja vida e seus pensamentos tornaram-se tão real quanto seus poemas. Em Lisboa, recém chegado, necessita ocupar-se de algo. “Tenho que abrir consultório, vestir a bata, ouvir doentes, ainda que seja só para deixá-los morrer, ao menos estarão a me fazer companhia enquanto viverem, será a última boa ação de cada um deles, serem o doente médico de um médico doente...”. 

Foi convidativo e fácil atrair-me pela discrição de Lisboa no livro. Para um apreciador de fado, pude imaginar o ruído dos sapatos ao caminhar das pedras centenárias, as aves marinhas a beira do porto, o vento que carrega o cheiro do mar.

Os romances de Saramago são caracterizados por uma estética literária que me atrai. Desafia o leitor frente à convenção gramatical adotada em sua obra. Pontuação particular que nos provoca estranheza, mas que pro vezes nos lembra poesia, um ritmo de melancolia ao serem lidas em voz alta. Pessoalmente sinto-me embalado por um envolvente contador de histórias. Vou além, sinto que o velho é que me conta as histórias, que parte da forma triste e velha do seu rosto, face sem expressão, um misto de rabugento e romântico que sempre me intrigou.

É claro que esse texto não é de longe uma resenha, muito menos uma tentativa. Apenas quis compartilhar algumas palavras que rascunhei durante a leitura do livro. Soma-se algumas interpretações que procurei realizar das características literárias de Saramago.

Enquanto isso, aguardo ansioso o dia que serei agraciado pela exibição do documentário, “José e Pilar”, até lá ocupo esse vazio tentando recordar aquele que nunca conheci.